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Metáforas do Corpo

Redação ABR

Autora: Lucia Merlino

Algumas práticas corporais privilegiam a experiência subjetiva, constituindo-se como um campo de conhecimento relativamente recente, ainda em processo de construção: são as abordagens somáticas. Apesar de muitas destas práticas utilizarem em sua base o conhecimento anatômico e neurofisiológico, não operam com formas de leitura e intervenção num corpo que é observado “de fora”. Ao contrário: o fenômeno do corpo humano é reconhecido a partir do ponto de vista dos sentidos proprioceptivos, ou seja, o corpo é percebido em “primeira-pessoa”.

Alguns teóricos têm desenvolvido também uma reflexão sobre os aspectos sociais e culturais implicados nas questões corporais: nossa experiência seria influenciada pela interação com o ambiente que nos cerca e pela maneira como compreendemos a nós mesmos e ao mundo através do corpo. De certa forma, tais práticas têm inventado seus procedimentos a partir da ampliação das abordagens filosóficas, científicas e culturais sobre o tema, que se intensificaram nas últimas décadas. Quando ocorrem insights transformadores no decorrer destas práticas somáticas, a metáfora pode emergir como expressão destas transformações, sendo um mecanismo de apropriação dessas mudanças.

Na prática clínica de atendimento em Rolfing, comecei a observar que havia um certo padrão no uso de imagens nos relatos de clientes. A metáfora, nesses relatos, aparecia para descrever sensações sentidas do corpo durante as sessões, mas também como produtora de sentido, de cognição, de apropriação de um auto-entendimento que emergia do processo. Este trabalho traz alguns aspectos do meu estudo sobre as metáforas no processo do Rolfing.

DE COMO A POESIA ORGANIZA NOSSA EXISTÊNCIA

Imagens e metáforas têm um longo histórico de aplicação terapêutica, curativa e mnemônica em muitas culturas. Estão presentes em práticas espirituais, religiosas, xamânicas, e mais recentemente, na psicoterapia e na reabilitação neurológica e motora. São utilizadas como inspiração de estados de relaxamento ou de movimento, nos esportes, na dança, e nas nossas sessões de Rolfing.

Durante muito tempo, a metáfora foi considerada um mero ornamento linguístico, uma parte dispensável para a comunicação humana do dia a dia. A partir de 1970 começa uma ruptura desse pressuposto objetivista, e uma reformulação das teorias da metáfora toma curso. O linguista Michael Reddy (Reddy, 1979) foi o primeiro a registrar no hoje clássico artigo “The Conduit Metaphor” o modo como a língua inglesa utiliza cotidianamente a metáfora, desafiando a visão de que o lugar da metáfora seria apenas no campo da linguagem poética ou figurativa. Nesse novo paradigma, a metáfora passa a configurar uma operação cognitiva fundamental, sendo uma parte importante e indispensável do nosso modo de conceituar o mundo a partir da experiência. As generalizações das expressões metafóricas não estão no domínio da linguagem, mas do pensamento: são mapeamentos conceituais cruzados, onde um domínio mental é conceitualizado em termos de outro. Conceitos abstratos como tempo, mudança, causa, ação, além de conceitos emocionais, como amor e raiva, são compreendidos metaforicamente, evidenciando a importância da metáfora na compreensão do mundo e de nós mesmos.

Na obra pioneira de 1980, Metáforas da vida cotidiana, Lakoff e Johnson atribuem à metáfora um importante papel cognitivo na atividade científica, argumentando que a metáfora une razão e imaginação, é uma racionalidade imaginativa, essencial tanto para a ciência como para as artes. O que eles trazem de novo é a ideia de que compreendemos o mundo por meio de metáforas, construídas com base em nossa experiência corporal, metáforas que iluminam e tornam coerentes nosso passado, nossos sonhos, esperanças e objetivos.

Gibbs (2004) afirma que estudos de linguística e psicologia recentes têm demonstrado a presença abrangente de vários sistemas metafóricos no nosso pensamento diário, manifestados na linguagem comum. Esses estudos têm procurado padrões sistemáticos de esquemas metafóricos de pensamento em expressões convencionais, na poesia, na narrativa histórica, em gestos não-verbais, e em experimentos psicolinguísticos. Gibbs relata que estudos em linguística cognitiva  demostram que pelo menos parte da cognição humana não é representada em termos de uma informação que tem esse propósito específico, mas é embasada e estruturada por vários padrões de nossas interações perceptuais, ações corporais, e manipulação de objetos. Estes padrões são gestalts experienciais, que Gibbs chama de “esquemas imagéticos”, que surgem durante a atividade sensório motora quando manipulamos objetos, procuramos orientação espacial e temporal, e dirigimos nosso foco perceptual para diversos fins. Esquemas imagéticos, para Gibbs, têm natureza imaginativa e são não-proposicionais, operando como estruturas organizadoras da experiência no nível da percepção corporal e do movimento corporal.

As novas teorias da metáfora foram inspiradoras por trazerem a ideia de que o surgimento de novas metáforas seria o indício de um florescimento do processo de compreensão de si mesmo. Uma parte fundamental das sessões de Rolfing é quando, após a liberação de restrições do tecido conjuntivo, o corpo começa a perceber-se de maneira diferente. O sistema sensório-motor funciona de maneira diferente e o movimento pode fluir com uma facilidade desconhecida. O movimento do caminhar apresenta-se com uma estranheza desconcertante e novas sensações, percepções e imagens surgem. Não é incomum que as pessoas digam que parecem estar “reaprendendo” a andar. Esse processo é aprofundado quando, ao perceber essas novas sensações, surgem as novas metáforas.

Em vinte anos de prática clínica foi possível coletar inúmeras imagens. Muitas são surpreendentes; outras são recorrentes, próprias do tipo de toque que o Rolfing proporciona: sensações de queimação, sensação de toque pontiagudo. Não é incomum as pessoas sentirem o toque como uma “faquinha”. E depois do toque, ao serem solicitadas a perceber a diferença entre o lado que foi tocado e o outro, é recorrente a descrição de “mais leve”, “mais solto”, “maior” – estas descrições são familiares aos ouvidos dos rolfistas.

Algumas vezes, os clientes são surpreendidos por devaneios e reminiscências muito antigos, lembranças do tempo da infância. Às vezes, conseguem relacionar essas imagens com uma determinada organização espacial e corporal, mas na maior parte das vezes em que ocorrem, não sabem de onde vêm tais imagens. São novos “esquemas imagéticos”, na definição de Gibbs, que surgem, buscando a organização da experiência. Em minha pesquisa, proponho estabelecer três tipos de metáforas corporais, que podem ocorrer no processo do Rolfing e em outros processos similares de conscientização corporal através da educação somática. São elas: a metáfora didática, a metáfora sensorial e a metáfora de conexão. As duas primeiras se referem às descrições de sensações do corpo em repouso ou em movimento, antes, durante ou após as sessões.

As metáforas didáticas são as utilizadas pelo rolfista, instrutor ou professor; e as metáforas sensoriais são as utilizadas pelo cliente ou aluno para descrever suas imagens a partir da escuta interior. O terceiro tipo, as metáforas de conexão, trazem um nível maior de complexidade, e surgem quando o cliente ou aluno busca a organização da experiência na relação com o mundo, não se limitando à sensação interna no corpo. Há uma ampliação do campo de percepção, pois esta imagem descreve um “estado” de organização do corpo que traz uma espécie de “gestalt” total, ajudando a re-significar o corpo no espaço e orientando suas relações no mundo.

METÁFORAS DIDÁTICAS

As metáforas didáticas são as apresentadas por terapeutas e professores da área de educação somática, dança, artes marciais e movimento em geral aos seus alunos e clientes para estimular um tipo específico de cognição e coordenação do movimento.

Hoje em dia há evidências científicas de que o uso de imagens mentais simulando movimentos melhora o aprendizado e a performance (Jeannerod, 1995; Landers, 1983; Suinn, 1980). O termo “imagética motora” está sendo utilizado em reabilitação neurológica e fisioterápica (Lameira, 2008), descrevendo o processo de imaginar o movimento de partes do corpo, sem que a ação seja executada de fato. Com o acionamento de representações sensóriomotoras durante a imagética motora, é possível manter o programa motor ativo, facilitando a execução futura de movimentos nos casos em que a condição neurológica de pacientes não permite que produzam movimentos. Um esportista, músico, bailarino ou paciente neurológico pode utilizar a imagética motora e ativar as áreas cerebrais Ccorrespondentes aos exercícios. Os exemplos na dança e nas artes marciais são inúmeros, criando paralelos com movimentos de animais, com formas de objetos, com sensações e formas da natureza.

As imagens são efetivas quando conseguem imprimir um forte estímulo no sistema nervoso, quando criam interesse. Como uma “isca” para o sistema nervoso, precisam ser pouco usuais: desconcertantes, ridículas, belas, excessivas. No consultório, o rolfista deveria sempre procurar encontrar a melhor metáfora para cada aluno, já que metáforas são muito pessoais e o que faz sentido para uma pessoa pode não fazer para outra. A rolfista Monica Caspari diz que a  imagem surge para ela durante a sessão, não é algo racionalizado, é uma criação do momento para aquele cliente específico com quem ela está trabalhando.

Basicamente existem dois tipos de categorias de metáforas didáticas: anatômicas e perceptuais. As metáforas didáticas anatômicas são usualmente descritas como anatomia experiencial nas terapias somáticas, e requerem uma introdução à anatomia, sendo um ótimo recurso para a conscientização corporal do cliente. Aqui já temos um elemento educacional, porque não raras vezes as pessoas desconhecem completamente a própria anatomia humana. Uma de minhas clientes, quando mostrei um modelo tridimensional dos ossos do pé, se deu conta do absurdo que era a sua ideia do pé como um só bloco não articulado. Aqui temos mais um exemplo de como a linguagem pode influenciar o entendimento da sensação do corpo: a movimentação desta cliente pode ganhar plasticidade simplesmente por que ela passou a ter uma imagem correta da anatomia do pé. Quando temos uma imagem equivocada do funcionamento de uma articulação, muito provavelmente aquele segmento terá um movimento desajustado. É muito útil mostrar para o cliente a representação bidimensional do esqueleto, no livro ou figura, ou a representação do osso tridimensional, para ser tocada, visualizada e, em seguida, experienciada.

No caso das metáforas didáticas anatômicas, as imagens devem estar muito próximas do funcionamento biomecânico das estruturas envolvidas. As metáforas didáticas perceptuais utilizam, como o nome diz, estímulos para percepção, criação e execução do movimento através dos sentidos. Aos cinco sentidos tradicionais, visão, audição, tato, olfato e paladar, Berthoz (1996) sugere que se acrescente o movimento – sentido cinestésico ou proprioceptivo – como um sexto sentido. A propriocepção será acrescentada nesta lista como uma modalidade sensorial que percebe posição, equilíbrio, tônus, gravidade. São percepções que precisam ser incorporadas ao imaginário e à leitura proprioceptiva do movimento e da sensação de si. Diversas explorações com objetos são realizadas com metáforas cinestésicas durante as sessões. No trabalho de movimento de Hubert Godard utilizando um bastão de bambu, por exemplo, o aluno é estimulado a segurar o bambu com um toque háptico nas mãos: tocando e ao mesmo tempo permitindo ser tocado pelo bambu. Ao executar o movimento de elevar o bambu para o alto, a instrução é que se pendure no bambu, ao mesmo tempo em que empurra o bambu para longe. Essas instruções, aparentemente paradoxais, traduzem complexas estruturas de suporte neurofisiológicos para o movimento.

As metáforas perceptuais táteis, auditivas, visuais e olfativo-gustativas são utilizadas durante as sessões para estimular outras dinâmicas de movimento e/ou proprioceptivas. Estas imagens sensoriais podem ser utilizadas para criar uma outra relação com objetos cotidianos. As metáforas didáticas têm também a função de introduzir aos nossos clientes de Rolfing uma línguagem para descrever as sensações do corpo-sensível. Desacostumados a nomear expressões do corpo-sensível, as metáforas didáticas vão criando um ambiente de linguagem onde o cliente vai desenvolvendo a palavra para articular o discurso do corpo.

METÁFORAS SENSORIAIS

São as produzidas pelos alunos e clientes, a partir da própria experiência sentida no corpo, antes, durante ou depois das sessões. Os clientes podem ser extremamente criativos quando procuram descrever suas sensações, utilizando recursos de seu próprio repertório de imagens. É imprescindível que o rolfista acolha e legitime estas descrições vindas dos clientes, exercitando sua capacidade de escuta e atenção ao mesmo tempo em que desenvolve suas estratégias de trabalho durante as sessões. Geralmente estas primeiras imagens surgem com timidez e insegurança, e precisam de estímulo do rolfista para continuidade e desenvolvimento desta expressão. Não estamos acostumados a falar sobre nossas sensações e nós, rolfistas, estamos portanto introduzindo uma nova ferramenta de expressão para nossos clientes. Devemos ser pacientes devido ao ineditismo da experiência, ao mesmo tempo que não podemos pressionar nossos clientes fazendo perguntas insistentes sobre como se sentem.

Ao longo das sessões, é fundamental utilizar sempre as mesmas palavras utilizadas pelo cliente, pois um sinônimo pode não ser a tradução daquela percepção: esta é a chave que garante a acuidade da utilização da imagem na comunicação A utilização das mesmas palavras do cliente também legitima e dignifica a experiência dele, que passa a ter espaço de representação. O ambiente de acolhimento estimula a emergência da expressão desses novos sentidos, em contraste ao anestesiamento e embrutecimento causados pelo hiper estímulo do mundo contemporâneo. Os exemplos são abundantes e extremamente criativos.

São muitas as metáforas descritivas que surgem com imagens gastronômicas. Uma psicanalista de setenta anos descreve da seguinte maneira o modo como sua perna a incomoda, antes da sessão: “Minha perna parece que tem lanterninhas que estão prestes a se acender. A perna está em alerta!”. E depois da sessão: “A perna parece quente, uma mussarela esticada. Não está mais em alerta!”. A psicanalista então se recorda dos tempos de infância passados numa fazenda. Descreve o dia lúdico em que todos se reuniam para fazer mussarela, e passa a explicar como se coloca água quente para o queijo esticar. Numa outra ocasião, uma jovem estudante de artes cênicas descreveu da seguinte maneira as sensações no seu corpo do lado trabalhado: “Parece a massa do crepe, quando a gente põe na frigideira quente. Esse lado ficou todo espalhado, derretido.”

Outras imagens são baseadas no mundo natural ou em objetos comuns:

– Este lado parece uma árvore seca, morta, preta. Do lado trabalhado, parece que o ramo da árvore está vivo, corre uma seiva, está acordado, azul. – Sabe quando os fios do computador estão bagunçados, enrolados? Na perna que já recebeu trabalho parece que os fios foram organizados e estão correndo paralelos, bem arrumadinhos. Na perna que não recebeu trabalho, os fios estão enrolados, confusos, bagunçados.

– Meu ombro parece um lençol todo amassado. Parece um lençol que estava no balde com água e secou toda a água, ele ficou todo amarfanhado e seco.

Uma senhora de 65 anos exclama de dor durante a sessão, enquanto toco seus pés; me pergunta se estou colocando uma “almofada de alfinetes” na planta do seu pé. Diante da negativa, precisa olhar para acreditar. Sente “agulhadas” de dor, que devagarinho, no decorrer do trabalho, vão sumindo. Ida Rolf falava de “espinhos cravados na carne”; clientes e alunos confirmam essa metáfora muitas e muitas vezes. Mais adiante, a mesma senhora descreve quando sente uma liberação no quadril: “Parece que tinha um fio de pião todo enrolado na minha cintura e agora soltou, posso respirar.”

METÁFORAS DE CONEXÃO

As metáforas de conexão são as que os clientes apresentam quando reconhecem estar num outro tipo de organização postural, onde a percepção do mundo e do outro altera-se. Surgem novas inferências, novos significados, novos sentidos, a partir da reorganização corporal e perceptual. A metáfora de conexão surge, baseada na visão cognitivista da metáfora, e ilumina/expressa conceitos abstratos que estão subjacentes ao pensamento humano, que norteiam a maneira da pessoa ver o mundo e de se referir aos objetos do mundo. As metáforas de conexão expressam os preciosos momentos em que o cliente se apropria das transformações que o Rolfing pode trazer, descrevendo novas relações e novas maneiras de ser e estar no corpo, ao andar, sentar, respirar.

Godard (2013) sugere que a metáfora de conexão surge quando há uma liberação, um desengatar, é como se a pessoa parasse de se prender à sua metáfora clássica, ao padrão que ele já tem. Quando o cliente se desprende de sua metáfora clássica, acontece o que poderíamos chamar de um vazio, um silêncio diante do que é novo. Esse vazio é condição sine qua non para que a nova metáfora surja, quando acontece esse desengatamento. Quando a pessoa muda o centro de gravidade, muda sua função fórica, seu deslocamento interno, sua função háptica, sua capacidade de relacionar-se com o ambiente, mudamos a tonicidade da organização do corpo. A análise do fluxo do mundo fica alterada, a cinestesia, os sentidos, é esse complexo de sentires, o comportamento na gravidade, que é alterado. O encontro com o mundo muda. E acontece a surpresa, o susto, o silêncio: é este o vazio que desengata. Uma cliente diz, depois da nossa última sessão: “Parece que não estou mais sozinha, eu entrei no movimento do mundo. Antes, eu estava encolhida, sozinha. Fico emocionada.”

O trabalho com postura pode ser considerado um trabalho de poesia: é a maneira como você organiza e relaciona o fluxo de percepção e sensação. Não é algo que se impõe de fora, tampouco algo que vem de dentro, é algo que acontece no encontro entre dentro e fora. E não há outra maneira de evocar mudança, senão através das metáforas que as pessoas utilizam para descrever como estão se sentindo.

Uma jovem cliente tem um insight ao perceber que sua nova postura exige que ela se mantenha presente na relação com o mundo – e isso demanda coragem: “Quase não consigo pegar esse conceito, é um lugar que ainda não existe. Quer dizer, ele existe, mas não tem palavra. Não posso ficar aqui (faz no seu corpo a postura habitual), com cara de noiva, como uma boa noivinha, ausente, passiva.”

Aqui, as palavras de outra jovem mulher, artista performer, descrevendo suas sensações depois do trabalho: “Assim me liberto de um estar em aperto, de um sufocamento mudo. Parecia que abriam dois olhos na boca do estômago, e passou a existir um vasto espaço à frente. Sensação de voo.”

Um cliente, homem de quarenta anos, descobre com espanto estar “com vergonha de estar mais reto, na vertical. Acho que trago coisas do passado no meu corpo, fico todo comprimido, com medo.”

O trabalho do rolfista também é lidar com esse quadro complexo de fatores, que tornam tão difícil mudar a postura de alguém. O ponto de vista fenomenológico nos ajuda a entender que quando ajudamos nossos clientes a habitar sua nova metáfora, é possível mudar a tonicidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Há um aspecto de criação quando se está na clínica num processo de Rolfing com um cliente. O terapeuta se aproxima do ofício do artista quando faz, ele próprio, a transição entre a sua percepção subjetiva, que exerce para receber o cliente na sua própria corporeidade, e sua percepção objetiva, que analisa o corpo do cliente com seu repertório de técnicas e estratégias de trabalho. Transitando entre um e outro, como um coreógrafo ou um diretor de cena, ajuda o cliente na missão de fazer surgir uma outra partitura possível, mais fluida, mais integrada ao mundo.

Ao propor três categorias de metáforas corporais, as metáforas didáticas, sensoriais e de conexão, entendo que é nesta última categoria que se traduz um processo de abertura com o campo social, artístico e político do sujeito. É na metáfora de conexão que acontece o insight, que faz com que o sujeito entre no estado de criação, não mais fechado no seu campo interno de percepção subjetiva, mas criando a ponte entre percepção subjetiva e percepção objetiva do mundo “lá fora”.

A memória do corpo, esse conjunto de sistemas sensório-motores organizado pelo hábito, pela história de vida e pelas crenças do que é um bom alinhamento, cria uma postura corporal. Essa postura é registrada na musculatura tônica e determina o estado de tensão do corpo, definindo a qualidade e a cor específica de cada gesto humano. Ao criar outras relações, o Rolfing provoca mudanças na percepção e na sensação processadas no corpo, e a pessoa pode recriar as imagens internas de si mesma e de certos padrões de relação. Pode ocorrer um partilhamento de experiências: o sujeito do processo partilha a sua história, cria uma narrativa, encontra a narrativa da sua experiência. E esse encontro se dá através da metáfora. O sujeito é o protagonista da sua própria narrativa, e aprende com sua própria experiência. Uma explicação para o surgimento de imagens e emoções que são o ponto de partida dessas narrativas, é que através do toque na fáscia, o terapeuta informa que é possível “articular a articulação”, ou seja, a pessoa pode se articular e deixar de ser um bloco, ganhando plasticidade e diferenciação, criando espaços de relação, dentro e fora, consigo mesma e com o mundo. Esta sensação de si mesmo que é articulada, diferenciada e portanto autônoma, pode ser muito potente: não é preciso “ficar se segurando”.

Quando o rolfista tem consciência da importância da metáfora como expressão de empoderamento da mudança que o Rolfing pode trazer, pode abrir um espaço dentro do processo para receber a palavra que vem do cliente. A palavra do corpo, quando é recebido, começa a criar um vocabulário, uma linguagem. A memória, fruto do encontro do corpo com o mundo, vai tramando a cada instante o registro desse encontro no próprio corpo. Ao reorganizar-se, durante o processo do Rolfing, voltando para um estado de vazio – expressão de uma ausência de tensões enrijecedoras – a pessoa pode compreender, processar. Tecido e memória se enredam numa outra trama, mais fluida, mais articulada, e através da metáfora, a narrativa se transforma em poesia. Se houver uma testemunha acolhedora para este processo, tanto melhor.

 

Bibliografia

GIBBS, Raymond, et al. Metaphor is grounded in embodied experience. Journal of Pragmatics, 36, pp 1189-1210, 2004. Acessado em www.sciencedirect.com no dia 09/06/2012.

GODARD, Hubert. Hubert Godard: Depoimento [maio 2013] Entrevistado pela autora. Paris, 2013. 4 vídeos (220 min).

HANNA, Thommas. What is Somatics? In JOHNSON, Don Hanlon (Org) Bone, Breath & Gesture: Practices of Embodiment. Berkeley: Berkeley: North Atlantic Books, 1995. p. 341-352.

JEANNEROD, Marc. Mental imagery in the motor context. Neuropsychologia, v. 33, n. 11, p. 1419-1432, 1995.

LAKOFF, George e JOHNSON, Mark. Metáforas da vida cotidiana, trad. Grupo de Estudos da Indeterminação e da Metáfora. São Paulo: EDUC e Mercado das Letras, 2002.

LANDERS, Daniel. The effects of mental practice on motor skill learning and performance: A meta- analysis. Journal of sport psychology, v. 5, n. 1, 1983.

REDDY, Michael. The conduit metaphor: A case of frame conflict in our language about language. in Metaphor and Thought ed Ortony, A. Cambridge University Press, 1979

SUINN, Richard. Body thinking: psychology for Olympic champions. In Psychology in Sports: Methods and Applications, ed. RM Suinn (Mineapolis: Burgess), p. 306-315, 1980.

Lucia Merlino defendeu sua tese de doutorado sobre as metáforas do corpo no Instituto de Artes da UNICAMP – SP em 2014. As ilustrações de Eva Furnari foram cedidas pela autora, por indicação de Monica Caspari, a quem a autora agradece.

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