Autora: Lúcia Merlino
Este texto analisa algumas das mediações entre o corpo humano, reconhecido como um sistema complexo e o ambiente onde o corpo opera. Os fundamentos teóricos do trabalho foram estabelecidos através das ideias de Ida Rolf, Hubert Godard e Jeffrey Maitland, dos neurocientistas António Damásio e Vilaynur Ramachandran, dos lingüistas e filósofos George Lakoff e Mark Johnson e do filósofo Michel Bernard.
A premissa básica da pesquisa é que existe comunicação entre os dois sistemas abordados: corpo e ambiente. Quando surge nessa relação algum tipo de interrupção no fluxo de informação, os processos de cognição são corrompidos (Greiner, 2005). Os juízos perceptivos também são alterados. O corpo deixa de ter uma comunicação na sua completude com o ambiente. Há silêncios, congelamentos, paralisias. Se o movimento está bloqueado em algum lugar do corpo, a percepção também está bloqueada ali (Godard, 2002).
O Rolfing® pode ser descrito como uma maneira de facilitar a conquista do movimento bloqueado, ao possibilitar novas cognições perceptivas. Desse modo o Rolfing® pode funcionar como elemento restaurador da comunicação bloqueada entre corpo e ambiente.
METÁFORAS PERSISTENTES
Apesar de todos os avanços conceituais que nos permitiram, a partir da segunda metade do século XX, rever antigas metáforas que traduzem o corpo como máquina, esse pensamento ainda é arraigado no nosso cotidiano e na nossa literatura. Nossas articulações devem estar bem lubrificadas, nossos ossos bem alinhados, as engrenagens em bom funcionamento, o motor do coração deve bater forte…
Ainda é forte e se insere de maneira sub-reptícia, quase que sem nos darmos conta, essa tendência de se estudar o corpo através das suas partes, sem levar em conta o todo. No pensamento científico ocidental, ainda fortemente marcado pelo Iluminismo, por exemplo, essa tendência ainda é dominante. Se o que se quer é estudar a postura humana, por exemplo, estuda-se a anatomia de suas partes e suas relações, sem levar em conta a pessoa com todas as suas singularidades psíquicas, afetivas, sócio-culturais. O corpo não passa de uma estrutura de órgãos justapostos, cujo entendimento operamos através de metáforas mecânicas e onde partes que não funcionam podem ser eventualmente substituídas. Essa metáfora tem o efeito potente de separar corpo e mente, já que os problemas são tratados focando apenas aquelas partes específicas que apresentam problemas, deixando de lado as relações de comunicação, codependência, conhecimento e percepção intracorpo e do corpo com o ambiente.
Podemos estudar o corpo humano a partir de um outro nível de descrição e entendimento: a relação de comunicação existente entre os dois principais sistemas envolvidos na configuração do corpo humano, o sistema corporal e o ambiente gravitacional da Terra. Quando silêncios, congelamentos, adensamentos, ou outros tipos de impedimentos são instalados nessa relação entre o corpo e o ambiente, começa um processo de lesão ou degradação do corpo. O movimento e a plasticidade são sempre a medida da boa comunicação, da saúde e da vida. Há portanto um processo coevolutivo de comunicação entre o corpo e o ambiente.
Estar centrado e equilibrado não é uma mera questão da biomecânica corporal. Outros componentes fazem parte da dinâmica de equilíbrio do corpo no espaço-tempo. As emoções também estão nessa equação e reverberam no corpo junto com os outros sinais somatossensitivos, ajudando a constituir o complexo conjunto de estados que envolvem a imagem corporal. A postura do corpo humano está carregada de elementos emocionais, frutos de sua história pessoal e de sua interação com o ambiente físico-social onde vive.
O PODER DAS NOVAS METÁFORAS
Para avaliar como se processa a transformação propiciada pelo Rolfing®, fizemos um estudo de caso. E surgiu a dúvida: onde buscar o fundamento de análise para verificar a tal mudança na relação entre corpo e ambiente? Como seria possível suprir a necessidade científica de medir, constatar, verificar uma melhor comunicação, uma comunicação restaurada, entre corpo e ambiente?
Desnecessário dizer que medições biomecânicas localizadas não seriam uma solução congruente com essa linha de pesquisa e nem com a complexidade do fenômeno. A grade teórica proposta está focada e dirige o olhar para além da mudança estrutural física devida ao Rolfing®. Em última instância, o foco de interesse é a pessoa e sua relação com o ambiente, e não a pessoa e suas partes. Onde, então, buscar aparato teórico para esta confrontação?
Pensamos que uma chave possível para resolver esta questão estava nas ideias propostas pelos pesquisadores Lakoff e Johnson (2002). Na obra pioneira de 1980, Metáforas da Vida Cotidiana, os autores atribuem à metáfora um importante papel cognitivo na atividade científica, argumentando que a metáfora une razão e imaginação, é uma racionalidade imaginativa, essencial tanto para a ciência como para as artes.
Para Lakoff e Johnson, a exemplo de outros filósofos e cientistas como os já citados Damásio e Ramachandran, corpo e mente não são mais vistos como separados: nossa corporeidade e nossa mente são inequivocamente unas, e só através dessa unidade é que podemos dar sentido ao mundo. O que eles trazem de novo é a ideia de que compreendemos o mundo por meio de metáforas, construídas com base em nossa experiência corporal:
Assim como tentamos encontrar metáforas para iluminar e tornar coerente o que temos em comum com alguém, também tentamos encontrar metáforas pessoais para iluminar e tornar coerentes nosso próprio passado, nossas atividades presentes, nossos sonhos, nossas esperanças e nossos objetivos. Em terapia, por exemplo, muito da autocompreensão envolve reconhecer conscientemente antigas metáforas inconscientes e como vivemos por meio delas. (2002: 351)
Essa teoria foi inspiradora por trazer a ideia de que o surgimento de novas metáforas seria o indício de uma nova relação entre o corpo e o ambiente. Se essas novas metáforas traduzissem liberação, aprendizado, crescimento, seriam indício de uma comunicação mais eficiente entre corpo e ambiente.
O ROLFING® E AS METÁFORAS
Uma parte fundamental das sessões de Rolfing® é quando, após a liberação de restrições do tecido conjuntivo, o corpo começa a perceber-se de uma maneira diferente. O sistema sensório-motor funciona de maneira diferente e o movimento flui com uma facilidade desconhecida. O movimento do caminhar apresenta-se com uma estranheza desconcertante e novas sensações e percepções surgem. Não é incomum que as pessoas digam que parecem estar “reaprendendo” a andar.
Esse processo pode ser aprofundado quando, ao perceber essas novas sensações, começa-se a estabelecer as novas metáforas. Essas novas metáforas, nos dizeres de Lakoff e Johnson (2002: 352), é que vão possibilitar a constante construção de novas coerências em nossas vidas, coerências que dão novos sentidos a velhas experiências. O processo de autocompreensão é o desenvolvimento contínuo de novas histórias de vida para você mesmo. (2002:351)
Daí a importância e o exercício constante da escuta e do entendimento das metáforas que surgem durante as sessões. Muitas metáforas são evocadas durante o processo. As primeiras associações são de imagens, aquelas mais simples: sinto (esse lado do corpo) maior; (esse lado do corpo) está mais pesado; esse lado está mais claro; esse pedaço está azul, do outro lado é preto; está limpo, do outro lado está cheio de sujeira; está cheio de seiva, o outro lado é um pau ressecado; está mais jovem, o outro lado é encarquilhado.
Num consultório de Rolfing® é possível coletar incontáveis imagens. Muitas são surpreendentes, como a bailarina que sempre tinha a imagem de homens de chapéu ao ser tocada na membrana interóssea entre tíbia e fíbula; a atriz que sentia uma águia presa abaixo das costelas; ou a fotógrafa que queria se ver livre do dragão que morava dentro do peito. Certamente todos vocês têm dezenas de outros exemplos fantásticos. Uma das teorias possíveis para explicar esse fenômeno é que a reorganização da rede de memória e tecido faz surgir tais imagens mentais, devaneios e reminiscências, que tanto surpreendem nossos clientes.
Uma senhora, secretária aposentada, ao ser tocada nos ombros, lembra-se subitamente que a mãe costumava amarrar seus ombros à cadeira, para que suas costas não ficassem arqueadas e para que mantivesse uma boa postura. Repentinamente, essa memória encarnada surge como trama no tecido. É exatamente essa rede de memória e tecido que pode ser transformada, reorganizada no corpo. Nessa ação de reorganizar-se, o corpo compreende suas razões e surgem novas metáforas. No caso da velha senhora, poderia arriscar dizer que uma dose de emoções conflitantes finalmente sentidas e percebidas, depois de tantos anos, aliados à uma nova organização nos ombros, forneceram nutrição para um novo bem-estar. Tecido e memória se enredaram numa outra organização.
No depoimento de outra cliente, uma jovem atriz:
No Rolfing® começamos a tentar {fazer com} que meu corpo unisse a parte de cima e a de baixo que atuavam separadamente. O esterno passou a derreter um pouco, penso que passei a usar o chão, percebi que havia algo entre os ossos, a musculatura, que eu poderia chamar de ‘vontade’, ‘de afeto’, ‘de coração’ – unindo as coisas muito internamente. Em outra ocasião perguntava como proteger o esterno, e imaginamos um unguento, depois o ‘rabo do dinossauro’, ‘o cabelão’…
A relação que se cria com o cliente é única, a cada caso todo um referencial singular de imagens começa a surgir. No caso dessa cliente, o tecido conectivo passou a ser entendido como um “afeto”, uma “vontade”. Mais adiante no seu depoimento ela se lembra de algumas imagens que surgiram nas sessões: o “rabo de dinossauro”, o “cabelão”. Essas imagens comunicam a nova metáfora do que foi percebido no corpo, são a elaboração da consciência perceptiva. É a busca de uma linguagem para se mostrar, para comunicar a experiência, para se apropriar da nova realidade. A metáfora é necessária como um outro tipo de linguagem, mais apta a comunicar a natureza da sensação-sentida do corpo.
Essa cliente tem dificuldade em obter um bom suporte dos pés, tem a estrutura organizada no apoio na ponta dos pés: não é a toa que se sente “avoada”, “flutuando”. Ao perceber uma nova organização estrutural que lhe permite um bom apoio sobre os calcanhares, comunicou esta sensação como um “rabo de dinossauro”. A metáfora evoca a postura, traduz a trama memória/tecido. Essa imagem, ao ser evocada posteriormente, permite a ela a memória de estabilidade, traz solidez ao osso do sacro, ajuda a liberar o peito sem esforço etc.. A imagem do “cabelão” foi minha e deu origem à seguinte, o “rabo de dinossauro”. Note-se o deslocamento do peso no eixo corporal: a cliente desceu a imagem da cabeça para onde está a bacia, onde era mais visceralmente necessária.
E mais uma vez, ela prossegue:
Ainda de vez em quando me deixo levar por essa minha tendência a ficar nas nuvens, de tirar os pés do chão e ficar no mundo da cabeça. Quando isso acontece, fico uns dias desabitada, planando, mas aos poucos quando começo a voltar, as relações vão surgindo novamente. – ‘Claro! Estou assim porque tirei o pé do chão’.
Aí começo a refazer as relações com o chão e então o esterno se ergue, os adutores conversam e tudo melhora.
Acho que ainda terei outras possibilidades de descoberta através desse trabalho, pois cada vez que deixamos estabelecer esse processo, ele nos alcança tão profundamente.
A imagem de “tirar os pés do chão”, “ficar planando, desabitada” traduz uma sensação-sentida no corpo. A imagem corporal pode ser definida como um complexo conjunto de estados intencionais – percepções, representações mentais, crenças e atitudes. É através do exercício da consciência perceptiva que a cliente pode alterar a sensação-sentida do corpo: começa “a fazer relações com o chão” lançando mão de imagens que a ajudam a construir outra estrutura mais estável. Talvez esse recurso, o de lançar mão de imagens estimulantes, seja uma das pequenas estratégias a que Ramachandran (2004) se refere para discutir a construção interior e modificação da imagem corporal.
Também a percepção, parte constituinte da imagem corporal, pode alterar-se. Novas ignições dadas a partir da percepção de um corpo “novo”, “desconhecido”, ajudam a alterar a imagem preestabelecida. Novas ignições perceptivas surgem reorganizando mapas corporais antes relacionados à mágoa e depois à alegria, como no caso da velha senhora. Lembramos que para Damásio, mapas ligados à alegria significam estados de equilíbrio, enquanto que os mapas relacionados à mágoa estão associados a estados de desequilíbrio funcional, com a possível presença de dor, doença ou desacordo fisiológico.
UMA NOVA JANELA
O Rolfing® procura tornar a pessoa adaptada às condições singulares do seu corpo em determinado ambiente, e, sempre que possível, possibilitar o reconhecimento desta mudança, através da consciência proprioceptiva.
Ida Rolf teve a visão de que o tecido conjuntivo era plástico e passível de transformação. Entendeu que o guia para que essa transformação transcorresse no mais alto nível de funcionalidade era o eixo gravitacional. E descobriu que essa transformação não se dava apenas no nível da estrutura e da funcionalidade, atingia todos os níveis do homem: psicológico, emocional, e, se quiser, espiritual. Ela dizia não saber porque isso ocorria, mas intuía a existência de diferentes níveis de descrição do corpo.
Transcorridos trinta anos, os novos entendimentos sobre o funcionamento do corpo-mente, dados pelas ideias de neurocientistas como António Damásio e V. Ramachandran, esclarecem algumas questões levantadas por Rolf. No Rolfing®, como em outras metodologias práticas, há muitas vezes problemas nos modos de descrever e analisar os processos, ao mesmo tempo em que muitas hipóteses acertadas são levantadas a partir dos procedimentos práticos. Assim, ao aproximar os procedimentos do Rolfing® de algumas das novas teorias do corpo, sobretudo nas pontes propostas com as chamadas Ciências Cognitivas, esperamos abrir novas possibilidades de ação. Parece que uma pequena fresta foi aberta e uma nova luz ilumina o trabalho estrutural, trazida pelas novas teorias de como as emoções são percepções do que acontece nos estados corporais, de como a memória se enreda numa organização da trama do tecido físico. Tudo isso corrobora a ideia de que a organização funcional e estrutural do corpo é fundamental para uma nova organização da pessoa em todos os níveis de descrição.
BIBLIOGRAFIA
- Bernard, Michel (2001) De la Création Choréographique. Paris: Centre National de la Danse.
- Damásio, António. (1998). O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano, trad. Dora Vicente, Georgina Segurado. São Paulo: Companhia das Letras.
- (2002). O mistério da consciência, trad.Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras.
- (2004). Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos, trad. do autor. São Paulo: Companhia das Letras.
- Gallagher, Shaun e Cole, J. (1998) “Body Image and Body Schema in a Deafferented Subject” in: Body & Flesh: A Philosophical Reader. ed. Donn Welton Malden. Blacknell Publishers Ltd.
- Godard, Hubert. (1994) “Reading the Body in Dance – A Model”. in: Rolf Lines, October 1994:36-41. Rolf Institute.
- (1995) “Gesto e Percepção” in: Lições de Dança 3. Silvia Soter e Roberto Pereira (orgs). Rio de Janeiro: Universidade.
- Gracovetsky, Serge. (1988) The Spinal Engine. New York: Springer-Verlag.
- Greiner, Christine (2005) O Corpo – Pistas para Estudos Indisciplinares. São Paulo: Annablume.
- Lakoff, G. e Mark Johnson. (2002) Metáforas da vida cotidiana, Grupo de Estudos da Indeterminação e da Metáfora. São Paulo: EDUC e Mercado das Letras.
- (1999) Philosophy in the flesh, the embodied mind and its challenge to western thought. New York: Basic Books.
- Maitland, Jeffrey (1995) Spacious Body: Explorations in Somatic Ontology. Berkeley: North Atlantic Books.
- Ramachandran, V. S. e Sandra Blakeslee. (2004) Fantasmas no cérebro, trad. Antonio Machado. São Paulo: Editora Record.
Este texto traz o resumo de um dos capítulos de minha dissertação de mestrado, apresentada em abril deste ano no Programa de Comunicação e Semiótica da PUC de São Paulo. Uma cópia do texto integral está disponível para consulta na ABR ou no endereço eletrônico www.sapientia.pucsp.com.br
*Artigo pulicado na edição 17 do Informativo ABR em Julho de 2005.