fbpx

Os Arcos dos Pés Parte 1

Redação ABR

Observação da autora: Gostaria de agradecer à Hubert Godard, pela sua visão na síntese de um modelo de compreensão que tanto contribuiu para o Rolfing®, e pela sua ajuda na elaboração  deste artigo.

 

Os Pés

Os pés são uma parte fascinante e extremamente importante da estrutura humana. Têm a função dupla de adaptar a transmissão do peso que vem de cima às irregularidades do chão abaixo. Como estruturas adaptativas, eles mudam de forma para refletir o que acontece no corpo acima deles. Como estruturas de apoio, são também responsáveis pela qualidade de movimento que ocorre no corpo durante a caminhada e em outras atividades. Neste artigo consideraremos os arcos do pé, para melhor compreender como funcionam os pés quando estamos de pé e quando andamos, e para entender como nós, enquanto Rolfistas, podemos intervir para ajudá-los. Também olharemos o movimento tridimensional que ocorre no pé em todos os seus movimentos.

figura 1: Os ossos do pé

 

Os pés tem dois arcos longitudinais e um arco transversal.

O arco lateral do pé é composto do calcâneo, cubóide, quarto e quinto metatarsos e falanges. O arco lateral mantém contato com o chão e dá apoio para a linha lateral inteira do corpo. O arco medial é composto do talus, navicular, três cuneiformes, primeiro, segundo e terceiro metatarsos e falanges. O arco medial tem função de elasticidade e descansa em cima do arco lateral. Os ossos que compõem o arco transversal são navicular, cubóide, cuneiformes e metatarsos. A função do arco transversal é transferir peso, apoio e impulso e modular o amolecimento ou enrijecimento relativo do pé nos diversos momentos da caminhada.

Muitas vezes, o estudo do pé e da caminhada é limitado ao pensamento do movimento antero-posterior que ocorre através do pé quando andamos. Entretanto, há um movimento finamente orquestrado que acontece em todos os três planos de movimento que ajuda o pé a impulsionar a perna para a frente e adaptar-se ao chão, e que define a estabilidade do core e do movimento contralateral ao longo do resto do corpo. Para a discussão deste movimento tri-planar, vamos dividir o pé em três partes diferentes: o retropé (composto de calcâneo e talus), o mediopé (composto de navicular, cubóide e três cuneiforms) e o antepé (composto pelos metatarsos e falanges).

 

O Retropé, o Mediopé e os Movimentos de Inversão e Eversão

O retropé e o mediopé são feitos para alternar entres os movimentos de inversão e eversão. Conforme Kapandji1, inversão/eversão acontece na articulação subtalar (subtalar é a articulação do talus com o calcâneo) e na articulação mediotársica (mediotársica é a articulação do navicular com talus e do cubóide com calcâneo). A articulação mediotársica é também conhecida como a articulação de Chopart. A inversão é composta dos movimentos de supinação, adução e flexão plantar, enquanto que a eversão é composta dos movimentos de pronação, abdução e dorsiflexão.

Para o Rolfista, os movimentos de inversão e eversão representam dois momentos distintos na caminhada, e também duas qualidades diferentes de suporte, que afetam a estrutura inteira. O pé foi feito para ser capaz de mover-se facilmente entre estes dois extremos, permitindo a capacidade de melhor estabilidade possível e melhor mobilidade possível. É comum, porém, que haja uma preferência para o movimento de inversão ou eversão, e esta preferência vai criar uma serie de mudanças previsíveis pelo resto do corpo. Quando o pé passa para o movimento de inversão, ele enrijece, tornando-se uma estrutura estável e coesa.. Quando o pé entra em eversão, ele se torna mais solto e elástico. Ambas estas qualidades são necessárias para um pé saudável com um bom funcionamento.

Inversão e eversão são movimentos nos quais a tíbia também participa. Inversão envolve a rotação externa da tíbia e eversão a rotação interna da tíbia. No âmbito psicobiológico, inversão e eversão têm também, cada um o seu caráter diferenciado. Os clientes que têm dificuldade em encontrar o chão, frequentemente têm pés com preferência para inversão. Assim, as funções que vem junto com o movimento do aterrissar, tais como, a capacidade de relaxar, expirar e entregar-se, podem ser mais desafiadoras para a pessoa com preferência para inversão. Clientes que tem dificuldade de engajar a orientação espacial muitas vezes têm preferência pelo padrão de eversão. Com a orientação espacial vem a capacidade de ir para cima e para fora, de inspirar e de engajar-se no relacionamento com o outro — e o cliente que se encontra preso no padrão de eversão pode encontrar mais desafio nestas funções.

A alternância entre inversão e eversão, que acontece dentro do ciclo de cada passo, é também a alternância entre o movimento ativo de tocar o chão e o movimento passivo de deixar-se ser tocado pelo chão. Quando o pé está em inversão, é um momento em que ele está mais firme — existe uma qualidade de rigidez que é necessária para apoiar o peso do corpo e alavancar o impulso do passo para frente e esta rigidez cria uma situação onde é mais evidente a sensação do pé tocando o chão do que sendo tocado pelo chão.

À medida que o pé passa para a eversão, fenomenologicamente há uma mudança. Na eversão, o pé se torna mais receptivo, assim a sensação de ser tocado pelo chão passa a ter mais prevalência. Somente quando o pé está mais amolecido que ele pode fazer as adaptações necessárias às irregularidades da superfície na qual ele pisa. A elasticidade de eversão acontece quando a sola do pé está viva e sensível, tanto quanto a firmeza de inversão acontece quando o pé está ativamente alcançando o chão em preparação para o contato inicial ou está em fase de pleno apoio.2

 

A “Ventosa”—o Movimento Triplanar do Antepé

O antepé – a região metatarso-falângea – é uma região chave de apoio para o pé todo e para a estabilidade de todos os três arcos. Se olharmos para a Figura 2, veremos que a entrelinha articular do primeiro cuneiforme e primeiro metatarso é diagonal, de tal maneira que quando o primeiro metatarso flete no primeiro cuneiforme, o movimento de flexão plantar é acompanhado por pronação e abdução (movimento do primeiro metatarso na direção do eixo central do pé). Da mesma forma, a entrelinha articular do 5º metatarso com o cubóide é diagonal também, de tal maneira que quando o 5º metatarso faz uma flexão plantar no cubóide, esta flexão plantar é acompanhada de uma supinação e uma adução (movimento do 5º metatarso na direção do eixo central do pé).3

 

Figura 2 – A ventosa

Quando os metatarsos fletem no mediopé, o segundo metatarso prona junto com o primeiro, enquanto o terceiro e o quarto metatarso supinam junto com o quinto metatarso. Isto cria uma dinâmica que se assemelha a uma ventosa—unindo os metatarsos numa cúpula coerente—tipo um diafragma. Este “diafragma” se eleva e se estreita com a flexão plantar e se abaixa e se alarga com a flexão dorsal. Este movimento acompanha inversão e eversão e dá apoio e estabilidade para o retropé. A “ventosa” se eleva para acompanhar a inversão e se abaixa para acompanhar a eversão.

Se o primeiro e segundo raios (raio=metatarso+falanges) não conseguem abaixar em direção ao chão quando o pé se carrega com o peso do corpo, assim criando a parte anterior e medial da “ventosa”, então toda a ação diafragmática do antepé se torna indisponível.  Quando esta ação diafragmática não funciona, o calcâneo perde o apoio do antepé e colapsa, entrando num padrão de valgo.4

Se o primeiro e segundo metatarsos perdem a capacidade de alongar para fora do mediopé, então o mediopé e o retropé se prendem num padrão enrijecido com preferência pela inversão.5

Figura 3 : Exploração para Sentir a “Ventosa”

Esta exploração pode ser usada para vivenciar a sensação da “ventosa” do antepé—também é extremamente útil para o trabalho com o cliente na posição sentada.

 

Comece na posição sentada, numa superfície que permita que seu peso descanse na frente dos ísquios. Apoie os cotovelos nos joelhos e a cabeça nas mãos, assegurando-se de que a maior parte do peso do corpo superior está sendo transferido para os pés. Deixe que o pé inteiro se alongue e ceda um pouco na direção do chão.

Brinque com um pé de cada vez. Comece achando o arco lateral. Assegure-se de que haja um contato contínuo pela borda lateral do pé e que o cubóide esteja bem plantado no chão.

Agora, mantendo o contato do arco lateral com o chão, levante o primeiro e segundo raios (raio=metatarso+falanges) até a articulação dos metatarsos com os cuneiformes. Lentamente, mantendo o contato do arco lateral, e especialmente o cubóide no chão, abaixe primeiro o segundo raio e depois o primeiro raio, deixando a base (ponta proximal) do metatarso se alongar para fora dos cuneiformes na direção do chão, até que o primeiro e segundo raios cheguem a descansar inteirinhos no chão, alongados e relaxados.

Se você conseguiu manter o contato do arco lateral com o chão enquanto fez o alongamento do primeiro e segundo raios, vai sentir a “ventosa” acionar. Depois de fazer isto uma ou duas vezes, levante e caminhe um pouco e observe a mudança que ocorreu.

 

O que acontece no pé durante a caminhada?

Agora que fizemos uma revisão do movimento triplanar do pé todo, estamos prontos para ver o que acontece no pé durante os momentos diferentes do andar (ai ai Lael, tenho problemas com soldados marchando). O movimento da caminhada é uma alteração contínua entre estabilidade e elasticidade, rotação e contra-rotação, e as funções receptivas e ativas do pé.

O fator determinante para a estrutura do pé é a maneira como é usado durante a caminhada.6 Conforme Dananberg, durante um dia que inclui somente 80 minutos de atividade em pé, cada perna completa 2500 ciclos de marcha. É fácil imaginar como, do ponto de vista de um Rolfista, mesmo uma pequena disfunção no pé pode criar problemas ao longo do corpo inteiro, já que esta pequena disfunção fica multiplicada por uso constante. Também faz sentido pensar que um pé com uma função saudável, com este movimento repetido muitas vezes por dia, pode ser uma força potente para o bem-estar.

A transferência de peso e as respostas do pé a esta transferência são diferentes na caminhada e na corrida. Nesta seção, as respostas a um passo lento ou moderado de caminhada vão ser consideradas.

Podemos pensar nesta trajetória de peso e movimento através do pé em termos de cinco momentos diferentes.

  • Ataque ao solo (aterrissagem) – também chamado de Contato Inicial—o instante no qual o calcâneo contata o chão;
  • Preparação para o pé receber o peso do Centro de Massa do Corpo – Pé plano;
  • Fase Média de Apoio (Descarga de peso total) –Centro de Massa do Corpo com suporte total direto no pé;
  • Preparação para impulsão;
  • Impulsão/Desprendimento(toe-off)

Aterrissagem: À medida que o pé se prepara para a aterrissagem ele supina e assim que o calcâneo faz o seu contato inicial com o chão, o pé vai para a inversão. Para este impacto inicial com o solo, o pé precisa de uma certa qualidade de estabilidade para se sustentar. O impacto do pé no momento da aterrisagem é um momento importante na marcha—acredita-se que este impacto ajuda a criar e manter uma massa óssea saudável nos ossos do membro inferior.

 

Preparação do pé para receber o peso de todo o corpo — Amolecimento, Palpação e Ajuste – O pé plano: Imediatamente depois da aterrissagem, o peso do corpo começa a se transferir por cima do pé. A tíbia roda internamente, levando o pé na direção de eversão (não é uma eversão plena—somente o suficiente para amolecer o pé um pouco).8 Este é um momento onde o pé se torna flexível, um momento onde ele recebe a informação do solo, quase como se fosse um órgão de palpação.9 Esta capacidade que o pé tem de sentir o chão é essencial para que consiga adaptar-se ao terreno em que pisa. Sem este poder sensível, uma pedra pequenina, ou qualquer outra irregularidade, por mínima que seja, pode ser motivo para lesão ou perda de equilíbrio. Num pé saudável, neste momento o arco lateral é plantado no chão e o arco medial suaviza e cede em direção ao solo. À medida que o pé palpa a terra, pode se ajustar a qualquer irregularidade na superfície. O mediopé alarga e abaixa e o pé todo alonga longitudinalmente. Este alongamento dos arcos mediais e laterais junto com o alargamento do arco transverso, engatilham um reflexo de estiramento que leva os músculos do “estribo” da perna inferior (tibialis posterior e fibular longo) a contrair, levando o pé para a próxima fase.  Resumindo esta fase do Pé Plano, primeiro o arco medial planta, logo após o ataque ao solo e em seguida, à medida que o arco medial começa a ceder, vem o momento de palpação e ajuste.

 

Descarga de peso total – Centro de Massa do Corpo com suporte total direto no pé: À medida que o peso do centro de massa do corpo apoia-se diretamente em cima do pé há um movimento do pé na direção de inversão (novamente, não é uma inversão plena—os ossos do pé viram-se o suficiente para criar uma estrutura capaz de suportar a carga). A tíbia começa a rodar externamente, levando o retropé e o medio-pé na direção de inversão. Os músculos de “estribo” colaboram levantando o arco transverso do medio-pé, enquanto que, à medida que o peso atravessa o pé, o antepé se aciona numa pequena flexão plantar, que leva o arco transverso dos metatarsos a levantar-se e estreitar-se. O movimento todo pode ser visto como o que acontece com um desentupidor de pia, que, depois de pressionado, volta para cima sozinho.

 

Preparação para Impulsão—O Centro de Massa continua por cima sua trajetória para a frente do pé.  Esta transferência de peso faz com que o hálux comece a entrar em dorsiflexão, e a aponeurose plantar (que se insere na base do calcâneo e na articulação metatarso-falângea do dedão do pé) é passivamente esticada. Isto cria uma tensão que segue por toda a sola do pé e traz um travamento na articulação calcâneo-cubóidea (“force closure” – uma compressão fisiológica e saudável na articulação). Isto estabiliza o pé todo – tornozelo, mediopé e antepé – justo no momento que o pé está passando por um estresse considerável, sendo preso entre a resistência do solo e a transferência do centro de massa para frente.10 Este travamento (force closure) estabiliza o pé e impede-o de oscilar durante a progressão para o momento de impulsão (toe-off). O pé se firma, enquanto a aponeurose plantar estica como um elástico—um movimento que armazena energia cinética, que será liberada no momento de impulsão e ajudará a propulsionar o corpo para frente.

À medida que o calcâneo começa a sair do chão, a perna de apoio, que se encontra em plena extensão, roda internamente na articulação coxo-femural, num movimento que é transmitido para baixo, indo da tíbia para o arco interno do pé, criando um movimento de eversão (elasticidade). O antepé, que ainda está na fase de apoio, continua na função mais enrijecida da “ventosa”, função que biomecanicamente acompanha a inversão. Ocorre uma torção em volta do eixo longitudinal do pé, à medida que ambos o retropé e o mediopé suavemente evertem, contra-rodando o antepé, que ainda está no movimento alto e estreito da ventosa de sucção. Esta contra-rotação armazena energia cinética e move o peso do centro de massa não somente para frente, mas também medialmente, em direção do outro pé, que logo vai se tornar o novo apoio.

 

Impulsão/Desprendimento — (Toe-off): No momento do desprendimento do pé do solo tudo muda. No toe-off a elasticidade do pé, junto com a liberação da fáscia plantar, propulsionam o membro inferior para a fase de balanço da marcha. Quando a perna começa a fase do balanço, o joelho (que estava plenamente estendido) flexiona, o quadril também flexiona e o gastrocnêmio tem uma explosão de atividade fásica,  pouco antes de o pé sair do chão. Estes movimentos, junto com o fato de que o peso corporal agora está sendo apoiado em cima do outro membro inferior, fazem com que a perna balance para frente. Há uma pequena explosão de atividade do psoas neste momento também, que, no mundo do melhor equilíbrio funcional, foi desencadeada por um reflexo de estiramento provindo de um alongamento passivo do psoas na extensão de quadril, em preparação para a impulsão.11 Este pulsar de atividade e relaxamento do psoas, à medida que ele alonga, contrai e solta, para a perna poder balançar para frente, é um fator importante para a manutenção de uma coluna lombar saudável. É dependente do funcionamento da “dobradiça metatarso-falângea”. Qualquer rolfista curioso pode vivenciar isto por si mesmo, simplesmente andando com a dobradiça do dedo do pé imobilizada e percebendo o que acontece com a ação do psoas.

 

Os Pés Na Função de Apoio de Carga

Nesta seção daremos uma olhada no que acontece nos pés enquanto estamos de pé, e nos momentos cruciais de preparação e suporte para receber o peso do centro de massa em cima do pé. Este é o momento no qual o peso do corpo inteiro se apóia em cima de um pé, para que a outra perna possa fazer seu balanço e vir de trás para frente. Neste instante, é a qualidade de apoio no pé que organiza ou desorganiza a estabilidade de core no resto do corpo. É também o início do movimento contralateral e um fator importante no equilíbrio do assoalho pélvico. Um relacionamento estável dos arcos do pé neste momento, quando o peso do corpo todo está em cima do suporte de uma perna, engaja o sistema do transverso abdominal/ multifideos, e permite o relaxamento da articulação coxo-femoral e o funcionamento do psoas da perna em balanço. Da mesma maneira, se o pé oscila neste momento, ou não tem capacidade de abrir-se para o chão, os músculos globais do tronco vão agarrar e tensionar, a articulação coxofemoral da perna contralateral vai encurtar e o psoas não vai poder desempenhar sua função.

Assim como os movimentos alternados de inversão e eversão acontecem na marcha, este relacionamento dinâmico também entra em jogo quando estamos em pé. Lembremos mais uma vez que o movimento em direção à inversão enrijece e levanta os arcos dos pés e que o movimento em direção à eversão suaviza e abaixa os arcos.

Num pé bem organizado, o arco lateral é feito para apoiar o arco medial e o antepé é feito para dar suporte para ambos os arcos. No mediopé e região subtalar, este apoio para o arco medial pelo lateral ocorre onde o tálus assenta em cima do calcâneo, no sustentaculum tali, e também onde o navicular e terceiro cuneiforme articulam com o cubóide.  Se olharmos para a face medial do osso cubóide, vemos que ela é cai numa linha diagonal, e que contém duas superfícies articulares, um para o navicular, outro para o terceiro cuneiforme, que descansam em cima deste apoio diagonal do cubóide. Em termos dos elementos miofasciais, muitos contribuem para o apoio dos três arcos. Alguns dos mais conhecidos são o ligamento plantar-calcâneo-navicular e o ligamento deltóide que apóiam o arco medial, o flexor curto dos dedos  e a fáscia plantar que agem como cordas de arco para os dois arcos longitudinais do pé, e o  tibial posterior e fibular longo, que agem como “estribos” em baixo do arco transverso do mediopé para apoiar e conectar. Quando a Dra Rolf falou que o problema do pé chato, na verdade era a “canela chata” ela estava falando destes músculos de “estribo”. 12  Quando o tibial posterior e o fibular longo se tornam incapazes de cumprir a sua função devido a uma membrana interóssea imóvel, imobilidade essa causada por uma falta de movimento adequado através das estruturas de pé, tornozelo e perna inferior, os arcos dos pés perdem o seu relacionamento harmonioso.

No melhor dos mundos, quando o peso descarrega no pé, há diferenciação e alargamento no arco transversal e no arco metatársico também. Cada arco longitudinal pode manter a sua função e tem elasticidade o suficiente para poder ceder na direção da terra na hora da carga. O arco lateral se alonga e se apóia no chão—o cubóide especificamente podendo fazer um contato bem firme. O arco lateral mantém o seu contato com o solo e o arco medial pode também encompridar e soltar na direção do chão, enquanto continua em cima de e apoiado pelo arco lateral. O mediopé inteiro alarga. O antepé aciona, apoiando o mediopé e o retropé.

A ação do arco transverso, tanto no mediopé quanto no antepé é uma parte essencial do relacionamento entre os arcos longitudinais. Quando o mediopé não consegue alargar acontece um de dois problemas. Ou o arco interno colapsa medialmente, puxando o arco lateral para cima e retirando-o da sua conexão com a terra, ou o arco lateral mantém o arco medial refém, não permitindo que ele alongue ou ceda para baixo.

Quando o arco transversal do antepé não consegue ativar, o suporte para o resto do pé se perde. A importância do antepé como apoio para o médio e retropé pode ser compreendido se usarmos a analogia de um arco arquitetônico. Num arco arquitetônico, a pedra fundamental – a pedra que se posiciona em cima, no centro do arco — mantém-se no lugar pelas forças equilibradas gravitacionais que vêm das duas pilastras laterais do arco. Se tirar a pedra fundamental as pilastras laterais caem, tanto quanto, se tirar uma das pilastras laterais o arco também cai. Da mesma maneira, se pensarmos no arco medial do pé como um arco arquitetônico, entenderemos que a pedra angular (neste caso, o navicular) consegue se manter no ápice do arco, exatamente por cause do movimento em direção do solo tanto do calcâneo no retropé quanto do primeiro e segundo metatarsos no antepé. Se o primeiro e o segundo metatarsos se prendem num padrão de dorsiflexão, por uma questão coordenativa ou estrutural, então a pilastra anterior do arco longitudinal se perde. Isto leva a um padrão de valgo (pronação) do calcâneo e o colapso do arco medial.

 

Três Padrões Comuns de uma Função Menos-do-que-Perfeita dos Arcos dos Pés

Nesta seção do artigo examinaremos três padrões comuns de estrutura e função do pé que podemos encontrar nos nossos clientes, e daremos algumas dicas sobre o trabalho com estes padrões.

 

  • O Pé Chato—o pé chato é aquele pé que tem pouco arco e pouca elasticidade, tanto no arco medial quanto no lateral. No momento de carga, não vemos uma linha diagonal de colapso na direção do arco interno—em vez disto ambos os arcos estão em pleno contato com o chão. Este é o pé que deixa uma pegada onde a sola toda do pé fica visível na areia. Na literatura médica este pé não é diferenciado do pé valgo (onde o arco interno colapsa medialmente), mas para o Rolfista, vale a pena distinguir.

 

  • Varo—O arco alto e rígido. Existem dois tipos de arcos altos e rígidos—um onde a imobilidade do arco é o padrão de base e outro no qual a estrutura  fixa dos arcos é uma compensação para um padrão subjacente de colapso (este tipo vai ser discutido na segunda parte deste artigo—onde falaremos do pé no seu relacionamento com o resto do corpo). O pé com o arco fixo e alto é um pé que tem uma preferência para o movimento de inversão. Ambos os arcos estão enrijecidos, o arco lateral está em contato com o chão, mas o arco medial não consegue soltar os seu peso para baixo. Nenhum dos dois alonga no momento da carga.  A pegada que este pé deixa na praia é uma na qual somente a borda lateral do pé aparece.

 

  • Valgo—o arco que colapsa. Neste caso, quando o peso vem para o pé, este peso cai numa linha diagonal na direção do arco interno, e à medida que o peso cai no arco interno, o arco externo perde o seu contato estabilizador com o chão. Este é um pé que tem uma preferência grande para o movimento de eversão. É um pé mais para mole e frequentemente acompanha o joelho valgo (pernas em X).

O Pé Chato (“Canelas Chatas”)

No pé chato, a questão principal está nos músculos de “estribo” da perna inferior. A palpação do espaço entre tíbia e fíbula revela que o tecido por cima da membrana interóssea tem uma grande necessidade de diferenciação. A fáscia plantar também se encontra endurecida, apesar de este ser um pé que mostra mais tendência para eversão. Este é o exemplo clássico que Ida Rolf descreve quando o pé chato, na verdade vem de “canelas chatas”—ou seja, pernas inferiores com pouca diferenciação, tanto de estrutura quanto de função. O aspecto mais importante do tratamento para este pé é ajudar os músculos do estribo a começarem a funcionar novamente.

Figuras 4a e 4b: o pé chato

O trabalho com este tipo de pé e perna inferior é concentrar-se na tarefa de deixar que a membrana interóssea volte a “respirar”, e amaciar a fáscia plantar. O trabalho coordenativo é muito importante para ajudar os músculos de “estribo” a funcionarem.  Um bom exercício coordenativo é colocar o cliente num degrau, com os calcâneos um pouco fora do degrau. O cliente pode segurar uma bola de tênis entre os maléolos mediais e outra entre os joelhos (isto ajuda a manter o alinhamento das articulações das pernas, à medida que ele trabalha para acordar o tibial posterior e fibular longo). Ele começa o exercício com os calcâneos abaixo do nível do degrau, e a partir desta posição, ergue o corpo até que todo o peso esteja na ponta dos pés. Depois ele volta para baixo, sobe de novo, etc. Ao ensinar este exercício para o cliente, melhores resultados são obtidos quando o Rolfista educa o cliente para prestar atenção no alinhamento global do corpo. Se o cliente precisar de ajuda para equilibrar o corpo, ele pode estabilizar-se colocando uma mão na parede.

Figura 5 – Exercício para Desenvolver Músculos de Ventosa

Arcos Altos e Fixos (Varo) — No trabalho com este tipo de pé, é preciso muita intervenção manual, tanto nos tecidos moles quanto nas articulações, para amolecer a fáscia plantar e a membrana interóssea e mobilizar as articulações do pé, que possivelmente se encontrarão em estado de fixação articular. Esta situação frequentemente é acompanhada de um padrão coordenativo no qual o cliente já se habituou a usar o pé mais como uma casca de cavalo, do que como um pé articulado e móvel. Uma vez restaurada a mobilidade articular e amaciados os elementos miofasciais, pode ser necessário também ajudar o cliente a sentir como o pé é capaz de mais movimento, e como ele pode incorporar esta nova liberdade nos seus movimentos cotidianos.

Figura 6: arcos altos (pé varo)

Uma maneira simples de conseguir isto é pedir para o cliente fazer o exercício de levantar e abaixar os dedos, enquanto você trabalha na sola do pé e ajuda a deixar o movimento fluir através dos lugares que ele tende a travar e enrijecer. Isso trata da questão do componente coordenativo/proprioceptivo junto com o componente estrutural. No final da sessão, para avançar um passo, você pode trabalhar com o cliente sentado na beira da maca, fazendo um convite para que ele incline o corpo à frente, dobrando em volta do eixo coxo-femoral, de tal maneira que o peso do corpo superior caia sobre os pés, usando a transferência deste peso para que ele sinta a mobilidade que pode ocorrer nas articulações dos pés.

É importante lembrar que o cliente que tem uma preferência para inversão no pé, frequentemente tem a tendência de tocar o chão com o pé, mas não permite a sensação de ser  tocado pelo chão. Assim, qualquer trabalho que ajude o cliente a sentir com a planta do pé, e reparar as nuances de movimento que ali se encontram, será bem-vindo.  Muitas vezes o problema começa num nível mais básico ainda: o cliente com pé que tem preferência para inversão, é um cliente que frequentemente tem dificuldade de deixar o peso corporal chegar no chão. Ele se segura acima do chão e trava no tornozelo, joelho e coxofemoral, para impedir que o peso possa fluir para baixo. Este hábito é uma questão que precisa ser abordada em todas as intervenções com o cliente.

Paradoxalmente, há uma certa porcentagem de clientes com arcos altos e fixos que, uma vez que permitam que o peso flua para baixo, demonstram um arco colapsado. Neste caso, o padrão subjacente de valgo precisa ser trabalhado também.

O Arco que Colapsa (Valgo) – O cliente que tem um arco que colapsa é um cliente cujo pé tem uma preferência para o momento elástico da marcha, quando o pé se ajusta no chão. No mediopé e retropé encontramos eversão e no antepé uma tendência de perda de suporte vinda do primeiro e segundo raios. No cliente com o pé valgo, o trabalho de tecido precisa tratar o alinhamento do quadril, joelho e tornozelo, com atenção especial para os adutores e sua conexão com o assoalho pélvico—o trabalho “clássico” da 4ª sessão.

Neste tipo de pé, que tende a ser flexível demais, é necessário prestar atenção à qualquer fixação em eversão na região subtalar ou mediotársica, ou nas restrições articulares entre os cuneiformes e metatarsais, que podem impedir os primeiros dois raios de fazer uma flexão plantar. No pé valgo, a necessidade de aumentar a estabilidade é uma grande parte da conversa, e esta é uma questão que tem um importante componente coordenativo. 

Figura 7A e 7B: arcos colapsados (pés valgos)

Quando se fala em estabilidade para o pé valgo, há duas questões: uma é o relacionamento dos arcos lateral e medial e a outra é a atividade estabilizadora do antepé para o calcâneo. Quando o “diafragma” do antepé está funcionando, há suporte para a porção do mediopé e do retropé do arco medial longitudinal. A capacidade dos dois primeiros raios de alongar e descansar no solo, quando o pé está em situação de carga, cria a parte anterior deste arco. Quando os dois primeiros raios levantam, o arco cai, o calcâneo roda medialmente e o porção do mediopé do arco colapsa (vejam o dedão do pé do pé esquerdo, especialmente, nas figuras 7A e 7B). Assim, o problema subjacente por trás de muitos arcos internos colapsados é a incapacidade dos dois primeiros raios de fazer um bom contato com o chão.

Apoio para o arco medial também vem do arco lateral. Nas palavras de Ida Rolf: “Como já observamos, o arco interno descansa em cima do arco externo. Contrariando a noção comum, é o último que se desfaz em primeiro lugar, o arco interno segue. Um pé normal precisa, primeiramente, do estabelecimento do arco lateral externo.” 13

O que é, então, que seguramente estabelece este arco lateral? Frequentemente é uma questão coordenativa, que envolve o aprendizado do cliente sobre como contatar o chão com o arco lateral e como manter este contato à medida que o peso descarrega no resto do pé.  Tem a ver com o relacionamento do arco medial com o lateral e a capacidade da “ventosa” do antepé acionar enquanto o arco transverso do mediopé alarga. Tem a ver também com o tamanho da zona neutra da articulação subtalar e as articulações entre o terceiro cuneiforme e navicular com o cubóide.

A zona neutra de uma articulação é definida como a amplitude de movimento próximo da posição neutra da articulação, onde as estruturas ósteoligamentares oferecem resistência mínima. Uma vez que o movimento da articulação sai da zona neutra, a zona elástica é engajada. A zona elástica é o nome da parte do movimento que segue do final da zona neutra até o limite fisiológico da articulação.14 Na zona elástica, os elementos miofasciais que entram em jogo na articulação estão ativos. Quando houve lesão, degeneração, ou simplesmente padrões pobres de coordenação, a zona neutra se alarga demais e a articulação torna-se menos estável. Há um intervalo de tempo maior entre o início do movimento e a ação das estruturas estabilizadoras em volta da articulação. No caso do pé, isto significa que à medida que o pé se prepara para receber o peso do corpo, há uma oscilação que desestabiliza o pé e desencadeia uma série de reações pouco desejáveis no resto do corpo.

Esta configuração precisa ser trabalhada no nível coordenativo, ajudando o cliente a estabelecer uma conexão firme do arco lateral com o chão e ativando o antepé. Uma vez acionado este apoio, sem perder a conquista desta conexão, o cliente deixa que o arco medial receba o peso e ceda na direção do solo. O momento decisivo é quando o arco lateral e o primeiro e segundo raios estão em contato com o solo e o arco medial começa a ceder — este é o momento em que os músculos estabilizadores precisam engajar um milissegundo antes, de tal maneira que o arco medial alargue mas sem colapsar e o arco lateral mantém contato enquanto o pé inteiro estabiliza. Este novo padrão de coordenação precisa ser ensinado para o cliente e depois praticado regularmente até o ponto em que o sistema do cliente já teve tempo de apropriar-se desta nova possibilidade e passa a fazer parte do seu movimento diário.

 

Meditação para Estabilizar o Pé Valgo

Esta meditação é feita em pé.

Comece em pé, com uma mão na parede ou em outro suporte. Levante um pé do chão e repare o que acontece no pé de apoio. O que acontece neste pé de apoio vai mostrar qual é a tendência no momento unipodal de apoio da marcha — este momento decisivo que ou dá o suporte para estabilidade de core pelo corpo todo, ou mina esta estabilidade.

O momento mais importante é o instante em que o pé de apoio se prepara para receber o peso do corpo todo. Este é o incremento de tempo antes que o outro pé saia do chão. O que acontece neste pé à medida que você se prepara para tirar o outro pé do chão? Ele oscila? Você vê pularem para fora os tendões da face anterior do tornozelo? Se você tem um pé valgo, que colapsa, provavelmente você vai reparar um ou ambos destes fenômenos.

Agora, para brincar com uma nova opção, comece de pé de tal maneira que você possa sentir o antepé engajar com o chão, tanto na borda lateral quanto na medial. Isto talvez queira dizer que você precise levar o peso do corpo superior para a frente até o ponto em que sinta a almofadinha de cada dedo do pé se acionar. Agora encontre o osso cubóide com a sua consciência e repare como é que o cubóide e o arco lateral inteiro descansam na direção do chão à medida que você deixe o peso do corpo superior transmitir-se por estas estruturas.

Com o arco lateral e o antepé plenamente engajados com o chão, prepare-se para levantar o outro pé, enquanto mantém este contato. No segundo em que você sentir o pé de apoio oscilar, pare, volte e encontre novamente o contato do arco lateral e antepé, até que você possa manter a presença dos metatarsos e do arco lateral enquanto o arco medial solta e cede. Quando isto acontecer, você vai se sentir estável e sólido no pé inteiro, à medida que o outro pé sai do chão. Provavelmente, você vai também notar uma sensação gostosa de leveza e alongamento que ocorre no corpo todo—aquilo que nós, Rolfistas, chamamos de “encontrar a linha”. Esta sensação ocorre quando os elementos coordenativos mais importantes da estabilidade de core começam a funcionar. Uma mão na parede pode dar apoio enquanto você brinca de encontrar a estabilidade no pé de apoio.

Este artigo continua na próxima edição do Rolfing Brasil: “Os Pés e o seu Relacionamento com o Resto do Corpo”.

Observação—todas as imagens deste artigo foram feitas pela autora.

revisão da tradução: Lúcia Merlino

 

Notas

  • Kapandji, I. A., Physiology of the Joints, Volume 2, Lower Limb. Churchill Livingstone-Elsevier, English edition: 1994
  • Anotações particulars da autora de uma aula com Hubert Godard
  • Kapandji, I. A., Physiology of the Joints, Volume 2, Lower Limb. Churchill Livingstone-Elsevier, English edition: 1994
  • Hamill, Joseph e Knutzen, Kathleen M Knutzen–Bases Biomecânicas do Movimento Humano, SãoPaulo, Editora Manole Ltda, 1999
  • Conversa particular com Hubert Godard
  • Conversa particular com Hubert Godard
  • Dannenberg HJ. “Lower back pain as a gait-related repetitive motion injury”, Vleeming A, Mooney V, Dorman T, Snijders C, Stoeckart R, editors. Movement stability and low back pain. New York: Churchill Livingstone; 1997
  • Hamill, Joseph e Knutzen, Kathleen M Knutzen–Bases Biomecânicas do Movimento Humano, São Paulo, Editora Manole Ltda, 1999
  • Conversa particular com Hubert Godard
  • Dannenberg HJ. “Lower back pain as a gait-related repetitive motion injury”, Vleeming A, Mooney V, Dorman T, Snijders C, Stoeckart R, editors. Movement stability and low back pain. New York: Churchill Livingstone; 1997
  • Dannenberg HJ. “Lower back pain as a gait-related repetitive motion injury”, Vleeming A, Mooney V, Dorman T, Snijders C, Stoeckart R, editors. Movement stability and low back pain. New York: Churchill Livingstone; 1997
  • Rolf, Ida P., Ph.D,  Rolfing The Integration of Human Structures, Santa Monica, California, Dennis-Landman, 1977, first edition, Chapter 4
  • Rolf, Ida P., Ph.D,  Rolfing The Integration of Human Structures, Santa Monica, California, Dennis-Landman, 1977, first edition, Chapter 4
  • Lee, Diane, “An Integrated Model of Joint Function and Its Clinical Application”, Paper presented at the 4thInterdisciplinary World Congress on Low Back and Pelvic Pain, Montreal Canada, November 2001

Publicado Rolfing Brasil n 34 ano XII 2012 p 03-12

Veja mais

Encontre um Rolfista perto de você

Conheça a formação em
Rolfing® Integração Estrutura