Em CALAIS-GERMAIN (1999), diz-se que o pé tem 26 ossos, 31 articulações e 20 músculos intrínsecos e que ele tem duas funções: suportar o peso de todo o corpo e também desenvolver os movimentos necessários para a marcha, o que requer tanto força quanto flexibilidade. A articulação do tornozelo combina a maleabilidade do pé com a força dos ossos das pernas.
Os ossos do pé podem ser divididos em 3 regiões:
O antepé, temos 5 ossos finos, alinhados um ao lado do outro, chamados metatarsos, que são estendidos por suas falanges (os dedos). No meio, há o mediopé ou tarso anterior cujos ossos são o navicular, o cuboide e três cuneiformes. É a área onde há mais torções para permitir que o pé se ajuste com o chão.
Na parte de trás temos o retropé ou tarso posterior, que consiste nos ossos tálus e o calcâneo.
Se dividirmos o pé em lateral e medial, temos lateralmente o calcâneo, o cuboide e os quarto e quinto metatarsos acompanhados de suas falanges (parte que geralmente recebem o peso do corpo na marcha) e medialmente temos o tálus, o navicular, os cuneiformes e os terceiro, segundo e primeiro metatarsos, também seguidos de suas falanges, geralmente envolvidos na propulsão na marcha.
Podemos falar dos seguintes movimentos dos pés:
Dorsiflexão – é a diminuição do angulo entre a parte anterior da perna e o dorso do pé, que se torna maior quando o joelho está flexionado devido a tensão dos gastrocnêmios, na parte posterior da perna.
Flexão plantar – também chamado de extensão, é o movimento oposto da dorsiflexão, aumentando o angulo entre o dorso do pé e a parte anterior da perna.
Adução – quando a ponta do pé se aproxima da linha medial do corpo.
Abdução – quando a ponta do pé se afasta da linha medial do corpo.
Combinando dois movimentos, temos:
Supinação – combinação de adução e flexão plantar, movendo a sola do pé em direção a linha medial.
Pronação – combinação de abdução e dorsiflexão, movendo a sola do pé distante da linha medial.
Combinando três movimentos:
Inversão – Adução, supinação e flexão plantar.
Eversão – Abdução, pronação e dorsiflexão.
Para estes movimentos, o pé utiliza tanto o trabalho de músculos intrínsecos (que tem origem e inserção no próprio pé) como extrínsecos (que possuem origem fora do pé e tem inserção no pé por via tendinosa.
No “pé ideal” temos 3 arcos (ROLF, 1999): O arco interno na face medial, o arco externo na face lateral e o arco transverso na parte frontal do pé:
O arco medial suporta o peso do corpo no tálus e o transfere por meio dos três primeiros artelhos. O arco lateral (externo) ajuda a distribuir o peso, erguendo e equilibrando o pé e o arco transverso é criado pela interação dos arcos lateral e medial.
Lael Keen (2011) fala sobre a “ventosa”, que simplificadamente é uma cúpula ou um diafragma formado na relação entre o primeiro e o segundo metatarsos com o terceiro e quarto, que respectivamente pronam e supinam, criando este formato. Esta ventosa se eleva com a flexão plantar e se abaixa com a dorsiflexão. Quando estas relações não funcionam, Lael fala sobre 3 padrões dos arcos dos pés:
O pé chato – Com pouco arco e pouca elasticidade, é o pé que quando pisa na areia, deixa a marca de toda a sua superfície e também é rígido.
O pé varo – Alto e rígido que tem preferência para a inversão, geralmente é a ventosa fica presa no alto e não desce.
Valgo – o arco que colapsa, que tem preferência para a eversão, como se a ventosa despencasse em direção do mediopé e perde o contato do arco externo como estabilizador. Geralmente acompanha o joelho valgo.
No “pé chato” na verdade é uma necessidade de diferenciação dos tecidos que envolvem a membrana interóssea das pernas, que funcionam como um estribo nos pés. A fáscia plantar também se encontra endurecida, porém sugere-se que o trabalho seja predominantemente na membrana interóssea, para que, segundo Lael, ela volte a “respirar” e daí amaciar a fáscia plantar. Um trabalho coordenativo destes músculos de estribo pode ajudar a recuperar a função. Desta relação surge a frase comum no Rolfing: “Pés chatos, canelas chatas”, por causa da forma com que a face medial das pernas acaba possuindo nesta situação.
Em “Rolfing: A Integração das Estruturas Humanas” Ida Rolf (1999) diz:
“O equilíbrio do corpo começa nos pés, pois o trabalho básico do pé e do tornozelo é oferecer uma base confiável pela qual a parte superior do tornozelo do corpo possa se relacionar com o plano horizontal da Terra. Pés e tornozelos eficientes devem oferecer um mecanismo para a mudança e para os ajustes contínuos do corpo que está sobre eles. Só trazendo-se a paz “do solo para cima” podemos compreender os problemas da parte superior do corpo podem ser “compreendidos”.
Na segunda parte do texto de Lael Keen (2011), a autora fala sobre as relações de transferência de peso do corpo para os pés, relacionando por exemplo a posição do centro de gravidade (G) com a descarga de peso sobre os pés, onde, se este centro de gravidade está muito posterior a articulação de Chopart, o cliente caminhará com muito peso nos calcanhares e haverá pouca ação dos dedos para propulsão na marcha. Devido à posição, o funcionamento dos psoas também se altera e acaba funcionando como um músculo tônico, segurando a parte de cima do tronco sobre a parte de baixo do corpo. Outro efeito deste posicionamento de G é que o músculo tibial anterior passa a trabalhar excessivamente para segurar o tronco posteriorizado e acaba prendendo o pé em supinação, desestabilizando o comportamento de ventosa dos pés.
Quando G está anterior a Chopart, temos a impressão que a pessoa está andando sempre com a bola dos pés, sem usar o calcâneo. Fazendo com que o sóleo entre em uma contração crônica para não permitir que o corpo caia à frente. Porém, a função principal deste músculo é ser uma absorvedor de impacto e em contração crônica, deixa de realizá-lo, fazendo com que as estruturas do corpo recebam mais impacto. O sóleo também acaba segurando o tornozelo em varo (inversão) não permitindo que a sola do pé se ajuste ao chão de forma coerente.
Outras relações também acontecem com o centro de gravidade superior (G’). Quando G’ está para trás, os fêmures (e consequentemente os pés) tendem a girar externamente (característica do padrão postural externo de Jan Sultan) enquanto G’ está neutro ou anteriorizado com relação a G, existe a tendência dos fêmures e pés girarem internamente (padrão interno), modificando também a dinâmica dos pés na marcha.
Utilizando um caso como exemplo, chegou até mim um cliente cuja reclamação principal eram as dores na linha lateral das pernas e quadris durante a após a prática de corrida. Contou também que havia passado há 5 anos atrás por uma cirurgia para eliminar o posicionamento varo dos joelhos, que na leitura corporal pareceu ter tido muito sucesso, pois estavam realmente alinhados, porém os pés continuavam muito valgos e com arcos bastante rígidos e altos, enquanto o tônus dos rotadores dos quadris e o posicionamento dos fêmures denotavam um padrão postural externo.
Intensifiquei o trabalho com os pés desde a primeira sessão, mesmo sabendo que nela não se inclui os pés. Comecei a prepará-los para a segunda sessão e fomos trabalhando até a quarta hora para permitir aqueles pés voltassem a sentir o chão e pudessem realizar as torções e movimentos necessários para receber e impulsionar o corpo. Logo na primeira sessão já era visível a melhora de sua contra lateralidade e contou que os pés estavam tendo mais contato com o chão, principalmente a parte medial.
Quando chegou para a segunda sessão contou que já praticamente não sentia mais dores durante e corrida, apenas a presença dos tratos iliotibiais e que começou a sentir os adutores doloridos, como se esta musculatura nunca tivesse sido utilizada. Ao sentar e levantar, percebeu que os contatos dos pés eram mais impulsionadores e firmes ao subir.
A cada sessão seu corpo se tornava mais veloz na corrida e seus pés mais presentes no chão e conforme “apareciam” novas estruturas integrantes de sua marcha, o cliente trazia alguns doloridos suaves, de partes trabalhando, como os tibiais, pertencentes a linha medial, após a segunda sessão.
A percepção do que era visto nas leituras era bem clara para o cliente, trazendo sempre novidades nas sensações, nos movimentos, no uso do corpo e, principalmente, na sensação dos pés, mais “inteiros” no chão, porém até o final da terceira sessão o core permanecia silencioso na contra lateralidade.
Após a quarta sessão ficou clara a sensação de voo na corrida, com alguns “doloridinhos” nos adutores após 15km corridos, pois estava fácil demais fazer a tarefa do dia, que eram apenas 12km, deixando nítido que o padrão externo do início da primeira sessão havia sido bastante atenuado.
Entre a quarta e a quinta sessão, o cliente percebeu que o peitoral estufado vindo do trabalho de força localizado, tinha se tornado algo mais uniforme e segundo ele “reto, sem ser jogado para cima, o que fez sentir que as cinturas podiam se mover em sentidos diferentes e isto facilitava o movimento, tanto para correr, quanto para andar, quanto para fazer as atividades de força da academia.
Na quinta sessão sentiu que sua cintura escapular podia de mover de forma mais independente da cintura pélvica, promovendo um nível bastante nítido de contra lateralidade, que era visível na leitura corporal. A sexta sessão teve de ser uma mistura de integração e trabalho da linha posterior. Os rotadores dos quadris ainda com bastante tônus se equilibraram e deram liberdade na relação entre coluna e pernas pela parte de trás.
Infelizmente, este cliente termina seu processo na sexta sessão, pois muda de cidade, porém agora com um corpo mais coerente com a gravidade e com a cirurgia que havia feito para mudar algo pontual, mas que se manteve escrito em seu corpo durante todo este tempo.
Por Bruno Bernardes · Published in Centro Viveka · Updated
Referências:
CALAIS-GERMAIN, Blandine. Anatomy of movement. Esatland Press: 1999.
KEEN, Lael. The arches of the feet. Structural Integration: June 2011.
____. The arches of the feet (Part two). Structural Integration: November 2011.
ROLF, Ida. Rolfing: A Integração das estruturas Humanas. Martins Fontes: 1999.