Autora: Liz Gaggini, M.A.
Tradução de Sandra Regina Garcia
Artigo originalmente publicado no 2005 Year Book do IASI
No trabalho estrutural normalmente tentamos realizar o alinhamento, equilíbrio e comportamento cinético da estrutura. Tentamos resolver problemas em todas essas áreas. As restrições viscerais (restrições da fáscia e ao redor dos órgãos) têm impacto em todas esses problemas estruturais. Uma restrição visceral pode ser a causa e/ou parte de um problema de desalinhamento, falta de equilíbrio, ou disfunção cinética. Quando nosso trabalho não é bem sucedido, precisamos tentar avaliar um componente visceral. Se encontrarmos restrições, precisamos ser capazes de corrigi-las.
Por que e como as vísceras afetam a estrutura?
As vísceras podem afetar a estrutura de duas formas muito importantes. Primeiro: o corpo tende a se moldar, mesmo quando desalinhado e com movimentos restritos, para proteger e “ajudar” um órgão interno. É como se o corpo desse prioridade para as vísceras e colocasse a postura estrutural em segundo plano. Segundo: as vísceras localizam-se na região central do corpo. Qualquer restrição na fáscia visceral é transferida diretamente para a miofáscia e para as estruturas corporais do torso. Isso ocorre especialmente nos diafragmas torácicos, respiratórios e pélvicos. O cérebro também é um órgão visceral. A relação das restrições da fáscia intracraniana com a estrutura do crânio tem as mesmas consequências locais e globais para a estrutura. O principal diafragma do crânio é a articulação esfenobasilar.
Os órgãos foram projetados para ajudar a atender as necessidades corporais de alinhamento, equilíbrio e movimento. Em geral há um componente altamente flexível na fáscia das vísceras e nos ligamentos viscerais, que permite que a víscera movimente-se com a estrutura miofascial e óssea sem causar qualquer tipo de dano ou inibição. Quando há alguma forma de restrição em uma área da fáscia visceral, ela irá interferir na capacidade da área de se mover com o corpo. Qualquer movimento forçado nessa área causará danos ou inibirá seriamente a função da víscera. Mas são raros os casos em que o corpo permite que isso ocorra. Na verdade o corpo inibe a estrutura miofascial e óssea para proteger a víscera.
O corpo ainda vai mais além na proteção às vísceras. Ele utiliza a estrutura para facilitar e auxiliar a função de um órgão com problema. Um exemplo dessa utilização ativa da estrutura em prol de uma víscera é o que ocorre quando há uma séria restrição no estômago. As estruturas miofascial e óssea se curvarão e dobrarão para posicionar o estômago, ajudando o tecido estomacal e colocando-o da melhor forma para exercer sua função. É a hierarquia do instinto de sobrevivência – a função do estômago é mais importante que o alinhamento da articulação.
Quando os terapeutas estruturais trabalham para alinhar a estrutura miofascial e óssea, normalmente ficam decepcionados quando o grande esforço para solucionar rotações e desequilíbrios laterais, ou para criar suporte e transmissão, parece não ser de grande valia. Na verdade, frequentemente trabalhamos na maré contrária da hierarquia da sobrevivência. As mudanças estruturais terão que esperar até que o problema com a víscera seja solucionado.
As estruturas horizontais do torso – os diafragmas – têm relação direta com as vísceras. A maior parte dos órgãos está ligada de alguma forma a essas estruturas. As vísceras também possuem ligações com o revestimento da fáscia presente na borda das cavidades viscerais. Esses revestimentos, por sua vez, ligam-se às superfícies internas dos músculos e ossos do torso. Esse é o verdadeiro núcleo do corpo. Essa parte do núcleo é ligada pela base pélvica e saída torácica e cortada transversalmente pelo diafragma respiratório. As restrições, desalinhamentos e inibições da fáscia visceral transferem-se diretamente para a estrutura do torso e, indiretamente, para o resto do corpo. Assim como todos os tecidos estruturais, quanto mais os problemas demoram para ser tratados, mais profunda e extensamente o tecido de uma restrição visceral impacta toda a infraestrutura. No esforço do corpo em busca do equilíbrio, ocorre uma ressonância nas estruturas horizontais. Essa ressonância também ocorre na fáscia horizontal da estrutura cranial e apendicular. É frequente a abertura do núcleo visceral também produzir e abrir o núcleo apendicular e cranial.
Restrições Viscerais
Quem cria as restrições viscerais? Normalmente, uma inflamação. Quando há uma inflamação no tecido, o corpo deposita mais fibras de tecido conjuntivo. Basicamente, tecido da cicatrização, o que produz firmeza e reduz a elasticidade no local. Quando a fáscia visceral está machucada ou contundida, inflama. Quando há doença, há inflamação. Por isso, ao avaliarmos problemas viscerais, estamos interessados em acidentes e ferimentos que possam ter afetado a víscera. Por exemplo, batidas são potencialmente mais prejudiciais para o tecido visceral do que para os músculos e articulações em si. Um outro dano comum que afeta muito o pericárdio é o exercício anaeróbico: força o coração e criará restrições na fáscia do pericardial. Mas, também estamos interessados em quais doenças a pessoa já teve. Hepatite, pneumonia, problemas estomacais, etc também criarão restrições nas vísceras. Essas restrições viscerais, por sua vez, resultarão em problemas para toda a estrutura.
Como manipuladores da estrutura, não estamos prestando atenção na fáscia visceral para curar males ou doenças. Estamos trabalhando com as vísceras para ajudar no bem-estar da estrutura. Poderemos até corrigir os efeitos de alguma doença, assim como corrigimos os efeitos de uma perna quebrada. É bem provável que nosso trabalho melhore a saúde e a função das vísceras em geral. Entretanto, é importante ter bem claro em nossas mentes nosso principal intuito.
Trabalhando com as vísceras
O principal trabalho com a fáscia visceral é desenvolvido com técnicas indiretas. Há alguns casos onde se pode desenvolver um trabalho direto. O trabalho indireto é realizado com foco no tecido e sua restrição, enquanto o direto tira o tecido da sua restrição. As técnicas indiretas têm mais êxito quando há alto nível de elastina no tecido. Em algumas áreas, o tecido visceral às vezes pode ser menos elástico. O mesentério do intestino delgado é uma dessas áreas e onde o trabalho direto pode ser mais eficiente.
Avaliação
Há várias formas de avaliar as restrições viscerais. Uma delas é deduzir sua presença analisando a estrutura e o movimento. Também pode-se mexer delicadamente nos órgãos (pesquisar) porque assim qualquer restrição irá inibir o movimento natural do tecido. Conhecendo a mobilidade natural, você poderá avaliar o local das restrições.
A forma mais precisa de avaliação de uma restrição visceral é ler o padrão do movimento inerente do órgão, o que se conhece como mobilidade. Esse padrão é obtido analisando a forma do órgão, suas ligações com a estrutura e sua disposição com relação aos outros órgãos. Em um sistema visceral saudável, os órgãos seguem um padrão previsível de movimentação para frente e para trás, dentro de uma determinada amplitude e grau de movimentação específico. Qualquer restrição irá alterar esse padrão, interferir na amplitude e reduzir o grau do movimento. Essas variações do padrão normal fornecem informações sobre a localização e natureza das restrições viscerais.
A natureza do movimento inerente
O movimento inerente para frente e para trás é o mesmo encontrado na long tide da avaliação cranial. A long tide, descrita pela primeira vez por William Garland Sutherland em Teachings in the Science of Osteopathy, é, na verdade, um movimento de expansão e contração. Um ciclo completo, composto por uma expansão e uma contração completas, demora entre 100 e 120 segundos, ou seja, cerca de dois minutos.
Há várias discussões sobre esse movimento, sua origem e existência. As discussões vão desde o âmbito espiritual ao fisiológico. Sutherland teve uma ideia quase espiritual e a chamou de long tide, “O Sopro da Vida”. Jean Pierre Barral, que escreveu vários livros sobre manipulação visceral, sugere que o movimento é definido na atividade de desenvolvimento do embrião. Pessoalmente, acho que a long tide é o efeito cinesticamente palpável da gravitação. Isso não exclui sua correlação com a atividade do desenvolvimento embrionário. E a própria natureza da gravitação é a correlação metafórica com o sopro da vida de Sutherland. Se estiver interessado no assunto, há uma seção no fim deste manual com dois artigos e alguns textos meus sobre gravitação e mobilidade.
Juntamente com a long tide, o corpo se expandirá e recolherá como parte dos ciclos de expansão e contração. Os padrões de mobilidade de todos os órgãos acompanharão naturalmente esse ciclo. Jean Pierre Barral chamou esses processos de inspiração da expansão e expiração da contração. Segundo ele, os órgãos movem-se como efeito da inalação e exalação. Esses termos não são bons para fazer uma correlação com o movimento real das vísceras. Entretanto, os termos são tão utilizados que o significado dos mesmos foi ampliado.
Há uma unidade e harmonia desse movimento inerente com a constituição e função de cada órgão. Por exemplo, a estrutura dos brônquios e função de permitir a passagem do ar para dentro e fora dos pulmões, é harmoniosa com o movimento inerente de inspiração e expiração. Há harmonia também entre o modo como as formas dos órgãos estão dispostas dentro do corpo e a maneira como eles se movem nos ciclos de expansão e retração, encurtamento e alongamento. Como os órgãos são devidamente encaixados nas cavidades viscerais, no caso de restrição e movimentação não natural de qualquer órgão, isso irá interferir no movimento natural dos demais órgãos. Finalmente, a forma com que ocorrem vários processos fisiológicos também é harmônica com o ciclo da mobilidade. Um exemplo bastante evidente é o movimento da matéria no trato digestivo. Na expiração há um movimento para baixo do trato, do estômago para o reto, e com a inspiração, ocorre o movimento reverso, ajudando as ações de esmagamento e peristálticas da digestão. Liberando as restrições da fáscia visceral, ajudamos a restaurar não apenas o padrão, amplitude e grau de movimentação natural dos órgãos, mas também a função natural dos mesmos.
Quando esse padrão, amplitude e grau de movimentação natural são resgatados nas vísceras, a estrutura óssea e miofascial não precisam mais se inibir ou desalinhar para proteger e ajudar os órgãos. O processo de correção dos desalinhamentos estruturais relacionados às restrições viscerais, exige ainda o realinhamento da fáscia extrínseca. O melhor é cuidar primeiro dela. E quando as vísceras estiverem liberadas, a abertura resultante desse trabalho possibilitará a expressão total do movimento inerente. Se a estrutura extrínseca estiver “amarrada” por causa de uma restrição visceral, quando as vísceras forem liberadas, não conseguirão expressar o movimento em sua totalidade. O que poderá causar desconforto e ser incômodo para o sistema. A presença de qualquer limitação extrínseca ficará evidente nos primeiros passos após o trabalho visceral.
Receber um trabalho visceral pode ser um evento bastante parassimpático (relaxante). Receber um trabalho extrínseco direto é, por natureza, mais simpático (estimulante). Se ambos os trabalhos forem desenvolvidos em uma sessão, o ideal é começar pelo extrínseco. O sistema irá integrar o trabalho melhor nessa sequência. Entretanto, se houver uma boa preparação, é possível oferecer ao sistema do cliente uma experiência mais simpática em primeiro lugar e realizar um pouco de trabalho extrínseco para ajudar o corpo a se adaptar melhor às mudanças viscerais.
Indução – a principal técnica indireta
A principal técnica indireta é a indução (também conhecida como facilitação). Para usar a indução com os órgãos, após sentir o padrão geral de mobilidade, siga o movimento mais forte, rápido e tranquilo do padrão até seu ponto final. Este é o ponto de maior excursão. Haverá um intervalo até começar o movimento oposto de mobilidade. Isso irá produzir um movimento na direção exatamente oposta àquela que estava sendo seguida. Nesse ponto faça uma barreira contra a reversão direta. Essa barreira precisa ser a mais forte possível de forma a impedir o movimento na direção oposta, mas leve o suficiente para possibilitar mais excursão. Rapidamente haverá um movimento diferente daquele do lado oposto. Pode ser um movimento ao longo da mesma linha original ou em qualquer outra nova direção. Se a barreira for muito forte não haverá nenhum movimento novo.
Qualquer movimento novo ocorrerá a partir deste ponto para maior excursão. Qualquer movimento diretamente na direção oposto é novamente sensivelmente bloqueado. Pode-se fazer qualquer novo movimento. Essa atividade acompanhar/criar uma barreira é repetida até a liberação. A liberação assemelha-se a uma abertura e amaciamento geral do órgão. Ela deve ser acompanhada por uma nova avaliação do padrão de mobilidade do órgão. Caso ainda haja alguma restrição, devem ser realizadas mais induções. As restrições sempre expressam-se como um segmento mais rápido e escorregadio do padrão.
Esse método de trabalho é poderoso. Pode ocorrer uma enorme mudança na posição e grau de movimentação dos órgãos apenas com pouco trabalho. É necessário cuidado para integrar essas mudanças às vísceras. Normalmente há mais de um órgão com restrições e vários órgãos envolvidos na área de um mal ou problema antigo. Pode haver tensões e restrições em todo o sistema, como no urinário ou digestivo. Será um grande desserviço para a pessoa se apenas um órgão for liberado e os outros não. Desconforto e a reversão ao estado de restrição são os sintomas mais brandos que poderiam acontecer. É melhor conseguir apenas 30% de melhora em vários órgãos com restrição em um sistema, do que 100% em apenas um.
Há muito que ser feito para se habituar a trabalhar com a fáscia visceral. É um trabalho que precisa de muita dedicação e paciência. Entretanto, devido as enormes transformações que podem ocorrer com esse trabalho. É um trabalho realmente para quem é impaciente. É necessário dedicação para aprender a realizar um trabalho preciso e integrado que produza esses benefícios. Desejo a vocês muito sucesso nessa jornada.
Copyright Liz Gaggini, 2003
Liz Gaggini é rolfista Avançada e possui uma clínica em Ridgway, Colorado. Ministra cursos de biomecânica e manipulação visceral no trabalho estrutural. Já publicou vários artigos sobre esses temas e o papel da gravidade no movimento delicado. Para obter informações sobre seus cursos e publicações, acesse www.connectivetissue.com.
*Artigo pulicado na edição 21 do Informativo ABR em Novembro de 2006.